A idéia central da “política da prudência1” de Russell Kirk me parece muito correta, embora tenha sido melhor formulada pior no seu enorme livro do que em uma pequena frase do joanadarquista Lucas Souza: “o conservadorismo é importante, porque tem muita gente com idéia errada por aí, e nós podemos não saber distingüi-las”.
Porém, há alguns problemas que precisam ser esclarecidos, ou melhor explicados, e que me impedem de enxergar os seus argumentos como refutação final do meu já tão humilde (embora feroz) anarquismo. São eles:
I Percebo alguma coisa errada, não sei bem onde, entre a afirmação de que toda ideologia é ruim, ou “todas as ideologias causam confusão2”, e a proposta conservadora de “conservar o mundo da ordem que herdamos, ainda que em estado imperfeito, de nossos ancestrais3”. Ora, sem precisar cair em exemplos como o do partido conservador inglês -- que conservava a política inglesa sempre onde estava, e se alternava no governo com o partido trabalhista, que a levava cada vez mais um pouco à esquerda --, está embutida nessa frase, talvez, a idéia, que ao mesmo tempo é clara e ferrenhamente combatida pelos próprios conservadores, de que a história é da humanidade é uma história de progresso linear rumo a uma situação melhor.
Querer conservar o mundo da ordem que herdamos significa conservar também os vários erros que podem ter sido cometidos pelos nossos ancestrais mais recentes, e conservá-los mesmo assim, acusando toda e qualquer tentativa de propôr soluções a esses erros de ideologia? Ou será que conservar o mundo da ordem é escolher um período determinado que seja tido como o auge da história humana e tentar restaurá-lo em nosso próprio tempo? Não seria isto ideologia?
Ou, ainda, será que conservar o mundo da ordem é selecionar, entre vários períodos do passado, alguns pedaços que o conservador considerar ótimos em cada sociedade, fazer dali uma mistura de sociedade ideal baseada no passado e então tentar implementá-la? Quem saberia dizer quais são as partes certas?
II Sobre a questão do que mantém a sociedade civil coesa, Russell Kirk, opondo-a à posição libertária de que o nexo da sociedade é o autointeresse, declara que a posição conservadora é a de que “a sociedade é uma comunidade de almas, que une os mortos, os vivos e os ainda não nascidos, e que se harmoniza por aquilo que Aristóteles chamou de amizade e os cristãos chamam de caridade ou amor ao próximo”.
Esta é uma posição muito correta, mas me parece estar em contradição com a defesa do Estado que ele faz na mesma página e na seguinte. O que me parece errado é que a sociedade não pode ser, ao mesmo tempo, uma “comunidade baseada no amor ao próximo” e uma comunidade que “requer não somente que as paixões dos indivíduos sejam subjugadas, mas que, mesmo no povo e no corpo social, bem como nos indivíduos, as inclinações dos homens, amiúde, devam ser frustradas, a vontade controlada e as paixões subjugadas” e, pior, que “isso somente pode ser feito por um poder exterior”.
Disto aí podemos tirar que, da mesma forma que Kirk define a posição libertária como sendo a de que o autointeresse é que mantém a sociedade civil coesa, a posição conservadora seria então a de que essa coesão vem apenas do Estado, e não de qualquer ligação entre vivos e mortos, ou do amor ao próximo. Já que, sem o Estado, diz, ele, citando Thomas Hobbes, a condição do homem é “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”?